Entrevista sobre o carnaval em Alagoas
















*Raquel Vieira

Uma análise dos carnavais de hoje em dia; alienação do carnaval; dissociação de tipos/formas do carvanal com a origem cultural/religiosa.
A prática cultural de um povo pode ser vista como última no plano político, a se considerar o grau de relevância e imediatismo em relação a outros pontos como saúde, moradia e educação. Mas se consideramos por objetivo a formação de um povo ou sua conquista, ou ainda, a supressão de sua essência para a dominação de um grupo menor sobre a maioria, a prática cultural toma uma dimensão diferente. A fusão de traços de uma cultura com os de outra pode resultar numa alienação tal, que no fim das contas, não se saiba mais de onde exatamente aquela manifestação deve começo. Alguns chamam isso alienação cultural; outros consideram uma proposta antropofágica, como sugerido pela Semana de Arte Moderna, marco da expressão artística no início do século passado; outros ainda, uma resultante da globalização ou fruto de um sistema econômico excludente, o capitalismo. Maior exemplo disto é do que falaremos: o carnaval e o que ele se tornou.
A seguir a opinião e a visão de três pesquisadores e antropólogos de épocas distintas de Maceió, Alagoas, sobre a relação da cultura afro com a manifestação: carnaval; sua ligação e desvinculo com a identidade religiosa de matriz africana e sua continuidade por outras classes sociais, que não se abstém de lembrar dessas origens, embora não as incorporem para a prática do batuque.
Professor Sávio de Almeida. Professor da Universidade Federal de Alagoas, antropólogo e pesquisador do carnaval há 20 anos.
Para o professor, a observação sobre o carnaval hodierno em Alagoas, passa pela construção histórica formada a partir de dois momentos da participação do negro na formação do carnaval no NE brasileiro: 1º formando a sociedade e a cultura brasileiras, em expressões como o carnaval e a religião e num 2º momento: do movimento político negro, de luta dos direitos de etnia e cor.
Assim, para o professor antropólogo, a questão da formação do carnaval tem haver com a Teoria da Festa, cuja explicação encontraria duas correntes: uma defende que a festa colocaria a sociedade de ponta cabeça, sendo uma expressão popular de transgressão em resposta aos paradigmas vigentes, e às classes dominantes; a outra, sugere que a festa mantém as estruturas de dominação e autentica estas formas. Seria uma forma de aliviar a pressão social pela festa, mas mantendo-se a estrutura de dominação.
Um exemplo deste último, segundo Almeida, seria o atual carnaval privatizado de rua, e seu símbolo maior: a corda entre os foliões. É a própria expressão simbólica da divisão de classes. Ela dividiria a coisa pública, em duas, pública e privada. O indivíduo estaria autorizado a participar na parte de dentro da corda, apenas quando exercesse o poder do capital.
O professor ainda nos conta que alguns clubes foram criados especialmente para a manifestação cultural: “O Clube Fênix, por exemplo, foi criado para o carnaval”. E, “ali onde é a atual Óticas Flamengo, era a Rua dos Blocos de Carnaval de antigamente. Alguns blocos como o Cara Dura arrastavam de 3 a 5 mil foliões, havia também o Cavaleiro dos Montes, destes ainda existe Vulcão, que é o bloco da Polícia Militar”.
Então, finaliza o professor Sávio, que sempre houve carnaval em Maceió! E que, esse negócio de dizer que não tem carnaval em Maceió vem das próprias pessoas que moram aqui que foram afirmando isso, pois “foi se afirmando que em Maceió não havia carnaval”! E, hoje em dia, as agências de turismo vendem o destino Maceió como um lugar para se descansar nesse período, como se aqui não tivesse folia. O professor refuta essa idéia e afirma que “não é bem assim”! Para ele, o capital acabou com o carnaval de rua de Maceió!
Bruno César Cavalcanti, antropólogo e professor da Universidade Federal de Alagoas.
1- Como o professor observa as mudanças que ocorreram no carnaval de rua de Maceió, principalmente em relação aos blocos de origem afro, como os maracatus e caboclinhas, por exemplo?
Em primeiro lugar, mudanças ocorrem sempre, e em todo lugar. No caso de Maceió, é possível observar inúmeras mudanças no decorrer de décadas. Há mudanças positivas em relação ao que você chama de “blocos de origem afro”, que se encontravam desaparecidos há décadas e décadas e que retomam aos poucos o espaço festivo da cidade. Isso porque tivemos mudanças muito negativas para as expressões culturais negro-brasileiras após o episódio do Quebra de 1912, como já afirmei em um de meus artigos sobre o passado do Carnaval em Maceió.
Já os caboclinhos não retornaram, e talvez assim permaneçam. O que é compreensível. Não há acréscimo expressivo desta manifestação no carnaval fora do Recife. Os caboclinhos malograram em Maceió, entre outros, pela transferência para Pernambuco de seus principais membros, ou parte deles, como se sabe e se poder constatar na literatura referente ao tema dos grupos de caboclinhos no Carnaval do Recife. Até meados do século passado, Fernão Velho foi um reduto importante dos caboclinhos em Maceió.
O “retorno” de grupos denominados “afro” talvez se explique por diferentes fatores conjugados. A partir dos afoxés baianos, e dos grupos afro-baianos do Carnaval de Salvador, mas, sobretudo, dos maracatus de nação do Recife, vemos se formarem grupos “afro” em várias partes do Brasil, e que se apresentam no Carnavale fora dele. Também todo um movimento de valorização de vínculos étnicos ajuda bastante para essa aparição.
2- As influências culturais dos carnavais de outros estados como BA, PE e RJ, têm diminuído o interesse do povo local em se envolver com está época festiva em Alagoas? Talvez por achar um carnaval mais pobre, devido ao fausto da manifestação popular em outros estados?
Não creio que este seja o principal fator. Afinal de contas todos esses três centros a que você se refere também sofrem influências externas. O que ocorreu é que nesses lugares o Carnaval se tornou, e a cada vez mais, um assunto de grande importância para a economia e para a administração pública dessas capitais. No nosso caso foi mais dramático porque o modelo de festa carnavalescas à base do frevo é bastante dependente do poder público, dos poderes municipais, para a sua organização. Uma vez que nos exemplos que você forneceu temos uma conjunção de interesses públicos e privados, assistimos muito facilmente a formação de verdadeiras narrativas sociais de valorização da festa, dos lugares e do modo local de festejar; o que contribui para a publicização, a divulgação sistemática das virtudes desses Carnavais, para o marketing carnavalesco em alto padrão, o que faz movimentar as cidades e garantir a auto-reprodução das festas em grandes proporções. Mas essa não é uma boa solução para nós. É necessário se encontrar uma fórmula própria.
Na verdade, temos problemas estruturais, sociologicamente falando, nas relações entre elite econômica e povo, vivemos numa cidade de altíssimos índices de exclusão e nossa esfera pública é muito reduzida, ou seja, muitas vozes estão excluídas de qualquer debate, de qualquer participação numa política para o Carnaval local. Acho mesmo que o Carnaval reflete, em sua miséria, nossa rotina de descaso e exclusão sociais. Veja o que ocorre com a divulgação turística nos dias de Carnaval: Maceió é vendida como um bom leito para os que fogem das festas nas cidades que você citou, como um paraíso de sossego. Ou seja, é um discurso para os outros, e não para seus habitantes. Obviamente que cabe ao povo fazer a sua festa; e isso é sempre mais difícil (aqui e em qualquer lugar) quando os poderes públicos constituídos dizem para não se fazer nada que atrapalhe a imagem desejada pelos setores que lucram com nosso simulacro anual de Carnaval, que são as prévias de Maceió, seja ela na enseada de pajuçara durante o dia ou em Jaraguá durante a noite. É uma caricatura de Carnaval.
Respondendo mais diretamente o que vc perguntou eu diria que o interesse por Carnaval é algo alimentado, que se reproduz. Não é nada inerente aos habitantes daquelas cidades que nos falta. Falta motivação para sair às ruas, para criar pequenos blocos de amigos etc. E veja que depois do Pinto da Madrugada muita gente se motivou a fazê-lo. O Pinto leva (assim como no “rabo do Galo da madrugada”) consigo vários e minúsculos grupos assim. Em minha opinião, o principal problema é a divisão espacial da festa carnavalesca na cidade. A cidade é muito dividida, socialmente dividida, e reproduz isso em seu Carnaval. Isso não ocorre nas mesmas proporções nas cidades que vc citou, e que são reputadas como tendo grandes Carnavais. Não quer dizer que esses segmentos sociais se misturem, mas é muito importante que se substituam no mesmo especo. Em Maceió, decididamente, não se quer que isso ocorra. Ao contrário, há esforços para segregar as populações, os dias, os momentos festivos.
3- Sobre o empoderamento da classe média em relação aos maracatus. O professor vê um certo desvirtuamento do folguedo em virtude do proposital desligamento com a religião afro, berço de sua origem/cultura?
Não, não vejo mal nisso. A liberdade de reinventar, de mesclar, de criar, deve ser preservada sempre, particularmente no ambiente das expressões artísticas. O bom é que se garanta o direito de manifestação para todos, inclusive para quem reivindica o retorno às “origens”, ou vínculos culturais bem demarcados, identitários e tal. Não fossem esses “para-maracatus” muita gente não se aproximaria dessa manifestação. Vejo, portanto, como uma espécie de triunfo dos maracatus tradicionais toda essa contaminação sonora, espiritual, e mesmo religiosa, que geraram através da admiração de que foram objeto.
Quanto ao fenômeno a que você se refere, ligados à proliferação de “maracatus”, vejo como algo saudável. É a base percussiva e o apelo estético de alfaias e adereços que atrai tanto. É preciso considerar ainda que o maracatu proporcionou ao não músico uma experiência musical direta, o som dos tambores. Não seria possível para tantos quanto desejem montar um trio elétrico ou uma orquestra de sopro sair por aí, tocando no Carnaval. Depois, esse crescimento expressa uma aproximação, em maior ou menor grau, com causas e bandeiras sociais e culturais do universo afro-brasileiro.
Christiano Barros Marinho da Silva, antropólogo e membro do Coletivo AfroCaeté.
Trajetória como antropólogo e pesquisador se aproxima mais do tema das comunidades indígenas. E dentro do tema dos povos indígenas ele se especializou em práticas curativas entre os índios da região do Baixo São Francisco. Enquanto pesquisador, trabalhou no Atlas das Terras Indígenas de Alagoas e atualmente realiza o Mapeamento Etnográfico das Comunidades Negras Quilombolas de Alagoas.
1- Como o pesquisador observa as mudanças que ocorreram no carnaval de rua de Maceió, principalmente em relação aos blocos de origem afro, como os maracatus e caboclinhas, por exemplo?
O carnaval em Alagoas eu vivencio enquanto militante pela cultura popular e enquanto brincante, integrante de um grupo de percussão e discussão, o Coletivo AfroCaeté. Bem, apesar de não ser o campo em que me especializei, procuro disciplinar o meu olhar sobre essas questões.
Olha, mudança sempre ocorrem por causa do dinamismo da história e da cultura. Porém o processo histórico foi desfavorável as manifestações negras, especificamente as de origem afroreligiosa. A existência de práticas ligadas a cultura negra nunca foi aceita de maneira harmônica.
Quando pensamos em manifestações coletivas envolvendo o maracatu em Maceió, ou em qualquer outro lugar, não devemos procurar uma linha histórica que ligue a um passado, é importante observá-las no presente, na sua dinâmica contemporânea. É evidente que jamais encontraremos uma linha histórica ligando o passado ao presente. Manifestações culturais se modificam e também podem ser criadas e recriadas. A tradição pode ser inventada. Temos que dissipar a delimitação de uma área exclusivamente tradicional da cultura popular. Sua legitimidade não está condicionada somente a tradição, a uma continuação sem quebras e sem mudança de algo que teve a sua origem lá no passado.
Carnaval é uma manifestação da cultura popular. E cultura popular é dinâmica, em constante transformação, ela dialoga com a modernidade. A junção de elementos, o hibridismo presente em manifestações da cultura popular, sempre impressiona muito. Mostra o quanto é rica e complexa a cultura. Mudança é algo que não devemos nos preocupar. A gente tem mais é que celebrar a modernidade, a universalidade, a dinamicidade presente na cultura popular, na cultura tradicional, na cultura afro.
2- As influências culturais dos carnavais de outros estados como BA, PE e RJ, tem diminuído o interesse do povo local em se envolver com está época festiva em Alagoas? Talvez por achar um carnaval mais pobre, devido ao fausto da manifstação popular em outros estados?
Vários fatores levam ao atual desinteresse pelo carnaval em Maceió. O fenômeno faz parte de um complexo processo que resulta no quadro atual. Possuímos uma identidade cultural frágil, ou fragilizada por sucessivos acontecimentos ao longo da história. O interesse pelo carnaval de fora é grande porque temos a nossa identidade fragilizada. Carnaval é uma manifestação popular ligada a tradição cultural local. Cultura tradicional representa a soma dos nossos valores ancestrais, passados de uma geração para outra. E isso é importante porque vai dar a nossa identidade cultural.
Acontece que em todas as épocas a classe dominante da sociedade investe em um modelo de cultura que sejam do seu interesse. E isso faz parte de um fenômeno de desestruturação da cultura local. A desestruturação cultural facilita a manipulação do jogo; a fragilização da identidade. O jovem sem identidade cultural é um jovem vulnerável a qualquer tipo de influência, sem compromisso com a produção cultural local. E assim acaba por desvalorizar uma realidade próxima e valorizar algo mais distante. Contribui pra isso a força globalizante das comunicações em nosso mundo atual.
Mas, a pesar de tudo, existe um crescente e renovado interesse pela cultura popular, e pela cultura afro. Grupos têm surgidos e, com muita luta, têm ganhado visibilidade. Grupos antigos têm se fortalecido. Várias pessoas pela cidade têm trabalhado incansavelmente para isso. Através do trabalho de militância dessas pessoas, espaços de visibilidade para a cultura são criados.
Então, a cultura popular resiste. E traz dentro dela uma força revolucionária. Ela é criativa e resistente aos interesses da classe dominante. Sou otimista. Vejo o carnaval especificamente como um rito libertador. Que faz o indivíduo sem visibilidade dentro de um círculo social passar da posição de espectador para a de ator do espetáculo. De um modo geral a cultura tradicional popular contribui na formação do indivíduo. O elo com a cultura favorece a elevação da autoestima, da confiança, principalmente entre os jovens.
3- Sobre o empoderamento da classe média em relação aos maracatus. O pesquisador vê um certo desvirtuamento do folguedo em virtude do proposital desligamento com a religião afro, berço de sua origem/cultura?
A gente tá vivenciando um novo momento. Eu não chamaria de empoderamento. Vejo o fenômeno como parte de uma movimentação de afirmação da identidade cultural e de pertencimento a um lugar, não só como algo físico e espacial. E esse fenômeno é positivo na medida em que vem acompanhado de conscientização e conhecimento das práticas ligadas a cultura afroreligiosa. E da possibilidade da inserção da cultura negra em diversas classes sociais. Assim, os grupos atuais podem se tornar aliados na luta por respeito a diversidade, seja ela cultural ou religiosa.
O Brasil, e especificamente Alagoas, tem uma dívida histórica com a cultura afroreligiosa, e com as religiões de matrizes africanas de um modo geral. No passado, maracatus, afoxés e outras manifestações eram comuns nos terreiros de Xangô e Candomblé em Alagoas. Muitas manifestações foram extintas com a perseguição aos terreiros, principalmente após a infeliz ação conhecida como “o quebra de Xangô”, que teve seu ápice 1912 com a morte em praça pública de Tia Marcelina, ícone da Cultura Negra em Alagoas. Inclusive registros indicam que no seu terreiro existia um maracatu. As manifestações culturais de origem afroreligiosa que conseguiram resistir foram tachadas ou autodenominaram-se de folclóricas para continuar existindo. Isso aconteceu também com as práticas indígenas.
Então, não é a toa que existe uma invisibilidade do batuque e das manifestações culturais de origem afroreligiosa em Alagoas. No passado a sociedade tinha aversão aos afoxés e maratatus, por causa da associação com a vida religiosa, chegavam considerá-los como sendo a própria religião. Hoje o preconceito continua forte a qualquer tipo de manifestação que tenha associação direta ou indireta com as religiões de matrizes africanas, e isso nos chama a responsabilidade. Chama a responsabilidade a todos os grupos que tem em sua base a percussão de origem afroreligiosa. Independente de classe, o batuque tem um chamamento ancestral, e ele também chama para a luta por respeito a diversidade.
E a despeito de todo processo histórico, hoje os terreiros de Candomblé e Umbanda em Alagoas são ativos e atuantes, e representam verdadeiros centros de resistência da cultura africana no Brasil, da cultura afrobrasileira. É de lá que se irradia o axé, a força de nosso batuque, da cultura negra, da cultura brasileira.
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